Quarta-feira, 19 de Junho de 2024
estes dias que passam 916

A culpa morre amancebada com o cocheiro

Mcr, 19-6-24

 

Há muitos anos, já, ainda os meus parceiros de bridge estavam vivos, e eu estava atrasado para a nossa partida dominical, resolvi ouvir o conselho de umas vizinhas e comer o que elas muito gabavam no pequeno restaurante da piscina. Arroz de pato à antiga, excomungado seja!

E em poucos minutos, comida feita, companhia desfeita, parti para a sessão de jogtinna.

Ao fim de meia hora, senti um enjoo que só me deu tempo de sair da mesa e correr para a casa de banho. Não alcancei o meu objectivo e vomitei todo o corredor da casa dos amigos que me acolhiam. Um horror! 

Fui para casa e durante di e meio nem saí, de tal  modo me sentia doente. 

Ao segundo dia arrastei-me até ao quiosque, comprei o jornal e lá vinha numa página interior a notícia de uma série de pessoas acometidas do mesmo mal ou pior, visto que algumas tiveram de ser hospitalizadas.

A empresa gestora do restaurante jurava a pés juntos nada ter a ver com o incomodo intestinal de uma boa dúzia de vítimas, coisa que me indignou de tsl maneira que, pela primeira vez na minha vida fiz uma queixa em boa e devida forma. P

Passaram dias, semanas, meses enfim, dois anos. Lá compareci no julgamento e para pasmo meu a condenação recaiu num jovem ajudante de cozinheiro, i+ou seja no último de quatro ou cinco responsáveis (proprietário da empresa, gerente, chefe de sala, cozinheiro...) A minha pouca fé na justiça esfumou-se ainda mais.

 

Narro este episódio de há quase trinta anos, porque acabo de saber que o sr dr Cabrita, ex-ministro da Administração Interna foi ilibado pelo Tribunal da Relação. O trabalhador  mortalmente atropelado pelo carro onde Sª Exª viajava repimpadamente no banco de trás. O chefe da segurança do sr Ministro também foi considerado inocente. Resta o motorista que, porventura por seu livre alvedrio conduzia a mais de 140 km hora se é que me lembro ainda. 

A presença de trabalhadores na autoestrada estaria sinalizada e é sabido que, normalmente, os motoristas do Estado são cuidadosos e só carregam no pedal por ordem expressa dos seus superiores que andam sempre atrasados. Tive durante anos um motorista e recordo perfeitamente o cuidado com que ele respeitava o código da estrada. Conheci outros que conduziam colegas meus e era geral o respeito pela lei e pela segurança dos passageiros. 

Também é verdade que aos Ministro se atribui sempre um profissional experiente, com provas dadas. 

Todavia, dois tribunais nõ conseguiram encontrar indícios suficientes para apurar responsabilidades pelo que, forçoso será concluir que, naquele malfadada ocasião, o condutor se tomou por um Ascari (nome de um famoso corredor conhecido pela sua temerária velocidade e morto por causa dela)e ceifou o desgraçado alentejano que ainda por cima produziu forte estrago no automóvel do Estado. 

A família da vítima, os “cidadãos auto-mobilizados” os seus advogados  e muita gente, como eu, simples paisanos, estarão agora a perguntar-se de não seria melhor, pensar em multar o desastrado cidadão atropelado por maus tratos a uma viatura do Estado, além do susto que terá pregado aos ocupantes da mesma.  

 

Claro que sobra um motorista do Estado cuja sorte desconheço

Às tantas sucede-lhe como ao jovem ajudante de cozinheiro a quem alguém ordenara que servisse um arroz de pato à antiga que sobrara de um casamento do dia anterior...



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Terça-feira, 22 de Novembro de 2022
Au bonheur des dames 549

Chuva e outras ocorrências 

mcr, 22-11-22

 

ao acabar de datar o folhetim reparo que existeuma capicuao que significaria um dia de sorte. À cautela joguei no euro-milhões mesmo se as leis da estatística joguem todas contra mim. Nisto acabo por ser tão português como o resto dos meus compatriotas que acreditam sempre num bafejo da sorte mesmo à ultima da hora. De todo o modo, também é verdade que quem não se habilita não ganha...

Também não vale pedir a ajuda divina pois sou um réprobo comprovado desde a minha longínqua juventude. Isto de ter andado, ainda que brevemente, de má vontade e com expulsões finais, durante dois anos , em colégios com padres a chatear, bastou-me para perder a escassa fé e a pouquíssima vontade de ir à missa. 

Todavia, encaro o mau tempo que faz com evangélica paciência. Sei que a chuva é precisa e de que maneira! E duvido que o que já caiu tenha composto convenientemente as barragens.

A CG  queixa-se do mau tempo, dos dias escuros, do mar que se não avista, sei lá do que mais.

Para ela, o mundo seria bem mais agradável se cumprisse o  dito (também ele muito português) de “sol na eira e chuva no nabal “. Conheço gente  que propões chuva à noite, se possível entre a meia noite e as seis da manhã. Dava para lavar as ruas e regar os jardins enquanto os enérgicos cidadãos dormiam o sono dos (in)justos.  Sempre que chego à esplanada (na parte protegida, claro) oiço criaturas a protestar contra o tempo e a afirmar convictamente que já chove há imenso tempo. 

Só lhes falta dizer que estamos prestes a criar guelras! 

Isto que vou ouvindo passa-se num país com um clima, apesar de tudo invejável. Imgine-se por momentos que isto era como a Ucrânia onde já neva. Imagine-se o que será viver em casas com vidros estilhaçados, sem água corrente e sem electricidade. É isto o dia a dia de pelo menos dez milhões de pessoas, tantas quanto a população portuguesa.

Um país onde 30 ou 40% das instalações de fornecimento eléctrico estão destruídas graças aos misseis russos, aos drones iranianos que chovem por uma pá velha. A “operação especial” que ia libertar as populações oprimidas pelo infrene regime neo-nazi, opressor da língua russa e da religião ortodoxa, traduz-se, cada vez mais superlativamente, numa política de destruição absoluta, de terra queimada, de genocídio, de crimes de guerra. A coisa é de tal modo que até o nóvel Secretário Geral do PCP já usou, e por duas vezes, a palavra “invasão”! Pelos vistos, “he saw the Light” como se canta num spiritual. Demorou quase nove meses a parir esta simples descrição mas antes tarde do que nunca. O camarada Jerónimo agora entregue a outras e mais simples tarefas deve estar a revolver-se. E a escassa rapaziada “russista” lá tem de meter a viola (ou a balalaika) no saco. Que maçada. 

E a chuva a dar-lhe forte e feio.... Oh que tempos difíceis!. Se Portugal não ganha ao Gana estamos feitos ao bife. E o Sr Presidente lá regressa de monco caído. (Só por isso atrevo-me a augurar uma impatriótica derrota!).

Entretanto com  chuva ou sem ela, os preços vão subindo com uma constância exemplar. O Professor Doutor Teixeira Ribeiro, uma das merecidas glórias de Coimbra, dizia que “a inflação crescia como nódoa de azeite num pano” Nunca encontrei melhor expressão para descrever este fenómeno. 

Eu confesso que, perante esta situação, emudeço absolutamente. Não é por humildade mas tão só por ignorância. Todavia, o que mais me preocupa é que enquanto confesso a a minha total incompetência, assisto a uma miríade de luminárias que sabem tudo, propõem tudo e clamam por medidas que, à primeira vista, parecem pouco eficazes ou aceleradoras da inflação. Assistir aos debates na AR e medir a propostas sugeridas atormenta o mais pintado. Com tantos sábios a nau perde-se e com ela a cara e a tripulação. Tremo só de pensar no que seria se estivéssemos fora da Europa, das suas instituições como é repetidamente exigido por uma minoria ruidosa e ignorante. 

O que nos vale é o Qatar e o futebol. E o Cristiano Ronaldo... E a Senhora de Fátima... E a “santinha da Ladeira”, já agora, (nunca se sabe se ela não será providencial)... 

De todo o modo antes isto que estar na Ucrânia.

(o título é uma homenagem a um dos grandes livros de Somerset Maugham que se intitula "Chuva e outras novelas" A peça que dá título ao livro é uma das melhores novlas que alguma vez li. Porventura a melhor!

 

 

 

 



publicado por d'oliveira às 19:05
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Segunda-feira, 12 de Setembro de 2022
au bonheur des dames 525

Eu também não! 

mcr, 11-9-22

 

No Público de Sábado, Pacheco Pereira vem dizer algo que deveria ser óbvio mas, pelos vistos, não é.

Declara que não pede desculpas por Wiriamu por duas especiais razões: porque esteve sempre contra a guerra e porque não faz sentido fazer um povo, um país inteiro responder por um acto criminoso, cometido em tempo de guerra por um reduzido número de soldados.

É verdade que o Governo da altura escondeu tanto quanto pode a história deste massacre numa guerra em que, dos dois lados os houve com fartura. Falo da guerra de África em geral e não de Moçambique em particular. 

Por muitas razões de queixa que a UPA, (arvorando-se de certo modo em representante única das populações angolanas) tivesse, os massacres do início da guerra onde pereceram brancos e, sobretudo, (é bom não esquecer) muito mais negros barbaramente assassinados é um massacre absurdo e indesculpável. Pior deu azo a uma repressão medonha e marcou definitvament o cunho de uma guerra onde cad barbaridade justificava outra. Pode haver quem finja esquecer mas a pqlavra de ordem “para Agol depressa e em força” teve um profundo eco nacional e um fortíssimo poio popular. Foram precisos mais de dez anos de uma gurra  onde quase se não via o inimigo para lentamente mudar a opinião de muitos portugueses.   O massacre do norte de Angola (que, aliás, poderia responder aos massacres de Icolo e Bengo de quem quase ninguém fala))  pelos vistos, foi varrido para debaixo do tapete.

Deixemo-nos de conversa barata: as guerras são o campo ideal para tudo e sobretudo para a barbaridade. Um massacre leva a outro o que não desculpa nem o primeiro nem o segundo. Nem os que se lhe seguem.

Para isso, ao longo dos séculos, foi-se tentando impor regras, leis de guerra, defesa das pessoas civis ou soldados. Conviria lembrar que, por exemplo, a guerra em 1385 ou em 1640 era diferente da guerra contra os invasores franceses (e bem nos lembramos de populações portuguesas  a chacinar, podendo, qualquer criatura que falasse “estrangeiro” o que levou o Exército inglês a tentar pôr um férreo e duro travão a certas milícias populares. 

Está à vista o que se passa, neste exacto momento na Ucrânia onde uma horda invasora mata, pilha, devasta. É provável que resistentes ucranianos também não diferenciem o soldado russo que se rende do outro que dispara.

A famosa teoria do pedido de desculpas cujo episódio mais significativo (que me lembre...) é o do dr. Mário Soares a  pedir perdão pelo massacre de judeus em Lisboa quando é sabido que a justiça real foi rápida em condenar, perseguir e punir os autores de assassínios e pilhagens (e aqui havia também muito estrangeiro embarcadiço no porto de Lisboa que ajudou à selvajaria e colaborou com a imbecilidade criminosa de um par de beatos na Igreja de S Domingos).E que, aproveitou para roubar o que pode de bens de cristãos novos ou de alguém que pudesse ser tomado como tal. 

Convenhamos que quase 500 anos depois, as desculpas não fazem sentido. É um gesto semelhante à ordem de Xerxes para chicotear o mar... 

Como Pacheco Pereira, recuso qualquer espécie de responsabilidade nessa história infame. Estive sempre do lado contrário à guerra e àditadura, não lutei em África por um bambúrrio (fui à inspecção antes da guerra estalar e fiquei “livre”) fui perseguido pelas minhas convicções e mais ainda pelas minhas acções que me levaram a Caxias por diversas vezes. Tenho na torre do Tombo 14 processos contra mim, foi-me interdita a entrada na carreira diplomática e por aí fora. No capítulo especificamente colonial, passei desertores pela fronteira e inclusive ajudei resistentes angolanos (um deles já com anos de Tarrafal)  a tomar  o mesmo caminho. 

Depois, nada tendo a ver com o crime, também não posso em consciência apontar o dedo ao milhão de portugueses que fizeram, forçados quase todos, a guerra colonial. Guerra que, aliás, os 2militares de Abril também fizeram anos a fio. 

O dr. Costa, filho de um oposicionista goês  que terá militado nos “satiagrah”  e que depois veio viver pra Portugal, resolveu pedir desculpa em Moçambique. É com ele mas de certeza não é comigo, nem com uma imensa maioria de portugueses que, seguramente, não aplaudiram a cobarde matança de Wiriamu. É verdade que não se revoltaram mas eu gostaria de ver (e sou boa testemunha desses tempo) quantos dos actuais “heróis” anti-fascistas que por aí pululam, seriam capazes sequer, de participar numa campanha promotora do voto nos anos que medeiam entre 1961 e 1974. 

Lembraria que depois da revolução ninguém se lembrou (ou quis) investigar os factos (que eram recentes), identificar os principais responsáveis pela chacina, punir os deveriam ter sido punidos. E nesse “ninguém” estavam, estão ainda, todos quantos ocuparam cargos políticos em Portugal

Querem ajudar Moçambique, ou as populações moçambicanas? Então, quanto mais não seja, ajudem a construir escolas, postos médicos a desminar milhares, centenas de milhares de hectares de solo agrícola. O resto é conversa e patacoadas. 

 

Advertência necessária: Wiriamu foi uma absoluta infâmia que, como se vê, atinge sem distinção portugueses e africanos pro-portugueses, incluindo os que se opunham à guerra e ao regime colonial e trouxe o luto a centenas de famílias negras  da região de Tete. Nunca é demais recordar esta tragédia mas conviria separar o trigo do joio. 

No meu caso e no de muitos outros amigos e camaradas da altura   a denúncia foi imediata e as consequências disso foram as que se esperavam.   Repressão, prisão e proibição de acesso a empregos dependentes do Estado ou da Administração para estadual.

Tentei pesquisar o que sucedeu à famosa 6ª Companhia de Comandos, tentei saber quem eram os seus participantes mas ou por ocultamento oficial ou por inabilidade minha nada obtive de concreto.

Em boa verdade, cinquenta anos depois de Abril continuam escondidos factos e nomes de agentes da repressão a começar por milhares de informadores da polícia e denúncias de traidores presos e que colaboraram com a pide. Tenho a profunda convicção que toda esse gente continuou a sua vidinha sem problemas, cruzando-se porventura com as vítimas da sua miserável actuação durante os anos em que informaram e  denunciaram milhares de  cidadãos seus conhecidos. O tempo que já passou ajudou a limpar a memória tanto quanto a apressada inscrição em partidos post-25 Abril que nunca se preocuparam em saber quem eram e donde vinham tantos “democratas” de pura cepa.   

A mesma espessa cortina de silêncio  caiu sobre uma larga maioria de “revolucionários” da 25ª hora que, durante o PREC e nos anos seguintes, levaram a cabo acções terroristas de toda a espécie e terão as mãos sujas de sangue inocente. Igualmente estão por identificar os novos “pides” que logo a seguir ao 25 de Abril andaram à caça de “reaccionários” que foram presos sem quaisquer garantias de defesa e sem direitos mínimos, presos também eles em consequência de denúncias anónimas ou por mera suspeita devido ao estatuto social, a anteriores cargos de importância na Banca e nos negócios. A quase total maioria destes presos foi aliás libertada sem uma palavra, uma acusação e, muito menos sem um processo. 

Longe de mim pretender, agora, 50 anos depois levar a cabo um processo  quer do Estado Novo quer das misérias militares ocorridas. É tarde, provavelmente vítimas e testemunhas desapareceram ao mesmo tempo que tantos anos depois poderão ter desaparecido torcionários e criminosos e respectivo séquito de denunciantes, informadores e traidores. E é por isso que acções individuais e descontextualizadas merecem escasso ou nenhum crédito. 

O dr. Costa poderá, querendo,  pedir as desculpas que entender mas em meu nome não.  

 

 



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Quarta-feira, 15 de Dezembro de 2021
au bonheur des dames 451

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O vírus “Estaline” nas vísceras

mcr, 15-12-1 

 

escrevi, aqui, há dias um suelto dobre o já esquecido slogan “estaline está vivo nos nossos corações”.

Um leitor atento e generoso diz-me que, também ele, acreditou na sua juventude que o ditador georgiano estaria vivo e impante no seu coração.

Por mim, o facto de Stalin (é assim que eu grafo o sr Yossip VissarionovitchDjugatchivilli) estar nuns tenros corações ignorantes porque jovens, não tem nada de mal. 

O perigo é quando o vírus sobe ao cérebro. E mesmo nesse caso, não a figura do “pai dos povos#, o bigode farfalhudo, os olhos pequeninos, o ar vagamente severo que torna as coisas mal.

O stalinismo foi uma doença ad idade adulta  do comunismo e traduziu-se numa curta série de princípios dogmáticos sobre a figura do chefe, o poder dele, os deveres dos restantes para com ele. A isso acrescentou-se a ideia da infalibilidade do chefe, a redução da colegialidade dos órgãos centrais do partuido a uma caricatura de unanimidade continua, a postergação da liberdade de opinião tornada crime contra o partido, e  ideia de que o centralismo democrático começava desde cima. A instituição da ideia de que “o anti-partido” era um crime colectivo, extensível às famílias e provavelmente ao serviço de potências estrangeiras ou de desvios internos do sistema, o mais famoso dos quais foi o trotskismo. E pano de fundo, a colectivização forçada de todo o aparelho produtivo, a suspeita sobre todo o pensamento individual, a submissão das actividades artísticas e/ou intelectuais a um pretenso espírito de partido ouainda ao que se chamou o “marxismo-leninismo” fez o resto. Mesmo do ponto de vista social, alguns progresso foram rápida e convenientemente abolidos ou esquecidos, desde a liberdade para abortar e, em regra geral, os direitos das mulheres, das minorias sexuais e das minorias nacionais tout court. 

Quando Churchill, que, de resto, nunca foi um entusiasta do regime russo (e digo russo porque neste caso foram os russos o elemento dominante e aglutinador do poder soviético, não deixando nada ou quase para as restantes nacionalidades a ucraniana incluída e aliás terrivelmente maltratada durante a grande fome.

Do estricto ponto de vista económico, a ideia do plano que tudo deveria gerir e a que tudo se deveria submeter também originou toda a espécie de desastres mesmo se a edificação a passo de corrida de uma indústria pesada (e nesse capítulo a do armamento)parecesse transformar um país semi-agriccla em 17 numa potencia industrial à  morte de Stalin). 

Incidentalmente, deve notar-se que os mais duros aspectos repressivos do regime permitiram o aparecimento de um formidável exército de mão de obra gratuita através da instituição do GULAG cujos detido cruzaram canais, assentaram vias férreas e estradas, trabalharam nas minas do fundo da Sibéria até morrerem de doença, fome, cansaço ou maus tratos.

De tudo isto houve sempre sinais e enúncias que nem sequer no Ocidente mais conservador tiveram especial impacto. Muito menos, obviamente entre a militância comunista do resto do mundo, cujos partidos cuidadosamente enquadrado pelo Komintern, submetidos a uma severa mas altamente discreta coordenação e intervenção interna dos enviados da 3ª Internacional que eram os correios entre a Direcção em Moscovo e a as direcçõespartidárias nacionais.

É que, em relação às duas anteriores internacionais (a 2ª de resto continuou a existir) havia uma diferença de peso: não estavam ali partidos autónomos e independentes uns dos outros mas apenas sujeitos disciplinados à moda bolchevique que tinham por missão acatar as directivas vindas do país em que “se construía o socialismo” e que devia ser preservado por todas as maneiras do cerco imperialista. Não admira, portanto, que mesmo nas nações mais expostas e ameaçadas pelo duplo crescimento do nazismo e do comunismo, consubstanciados pelo pacto  Molotov-Ribentrop, os partidos comunistas locais aceitaram tudo mesmo se, vozes mais cautelosas avisassem que seriam as primeiras vítimas dessa aliança contra-natura.

Estava a França já ocupada pelo exército alemão e o partido comunista francês continuava a afirmar que a guerra era entre dois blocos igualmente condenáveis pelo que a URSS fizera bem em não se posicionar mesmo se, o seu não posicionamento significasse um dilúvio de ajudas em artigos e bens de todo o género para a Alemanha hitleriana. E na eliminação da independência da Polónia e dos países bálticos, na entrega de numerosos refugiados judeus, comunistas na generalidade, aos seus perseguidores. 

Só quando a URSS foi invadida é que, subitamente, os partidos comunistas ocidentais se mobilizaram. No caso dos países ocupados, até esse momento, a Resistência anti-fascista era de origem socialista, conservadora ou radical e duramente criticada pelos comunistas (mesmo se haja conhecimento de numerosos casos individuais de militantes comunistas que desobedecendo ao partido se juntaram à luta clandestina contra o invasor). 

Esta cegueira ideológica dessa época não desapareceu. Voltou a emergir nos anos sessenta, quando os efeitos de uma tímida destalinização produziram alguns ifualmente tímidos efeitos na estrutura dos partidos ocidentais e sobretudo na política da URSS. 

Subitamente, porventura com a activacolaboração da RP China, começaram a surgir em todo o  Ocidente pequenos grupos que contestavam as políticas locais dos respectivos PC e a política mundial da URSS. Para o efeito, e apenas emblematicamente, usaram a figura de Stalin, entretanto condenado como figura de proa de uma renovação do espírito do comunismo puro e duro de 17. 

Junte-se-lhe a descolonização, a emergência do 3º Mundo, a revolução argelina ou a cubana e a continuidade da guerra de libertação do Vietnam (primeiro contra os franceses vencidos em Dien Bien Phu e pouco depois substituídos pelos americanos que ajudavam o Vietnam do sul). 

A irrupção da juventude (desde os Estados Unidos ou o México, até à Alemanha Ocidental e depois à França e à Itália) chegou obviamente a Portugal, com a ajuda da eclosão da guerra de África, a partir de 61 mas sobretudo crescentemente visível em 63/64 e massificada a partir de 1959. 

Não vale a pena (ou antes valeria mas demoraria o espaço de mais três posts) ir verificar a queda de popularidade do PC nacional entre os jovens progressistas portugueses (fundamentalmente os universitários, claro). Aconteceu, a guerra soprou as chamas da indignação, primeiro, da revolta (e do medo de morrer, evidentemente), depois. Tratou-se fundamentalmente de pequenos grupos, que aliás se iam dividindo, reunindo ou dispersando sem qualquer espécie de ordem, facilmente detectados pela polícia (ou mesmo denunciados por outros concorrentes basta lembrar as primeiras denúncias em letra de forma contra a FAP e os seus três principais dirigentes qualificados de ”provocadores”. O 25 de Abril possibilitou uma nova explosão de grupos e consequentemente uma enorme dificuldade em os diferenciar substancialmente. Todavia, a consolidação da democracia foi-os eliminando sem dificuldade de maior, por desistência de unsm absorção de outros até ao último redutos de iludidos lutadores que em nome das FP 25 abateram uma boa dúzia de pessoas cujo papel “imperialista, capitalista” ou outro qualquer era inexistente. Sem ideologia capaz, sem organização eficiente, sem educação política que se visse foram rapidamente caçados pela polícia e depois, mercê de um a lei miserável que protegia a cúpula da organização, acabaram sem sentenças especiais. A morte das vítimas foi ignorada e os assassinos , pelo menos os que ainda estão vivos, gozam uma tranquila velhice. No mesmo cao estão uns milhares de miseráveis que, durante os anos de chumbo, forneceram à polícia informações sobre militantes políticos ou por vingança ou a troco de dinheiro. Outra lei infame veio proteger os seus nomes infamados por cinquenta anos se não estou em erro. É o país dos brandos costumes que temos. O mesmo que assiste ao fim de processos de corrupção conta antigos políticos por prescrição e que, talvez, vá assistir à tranquila libertação do sr Rendeiro por o Ministério Público não ter tradutores!... E nunca se ter preocupado em, o momento vindo, ter as coisas prontas... 

É pró que estamos.

 

Uma pequena anedota sobre os estalinistas. Conheci bem (e cruzei-me com ele, várias vezes inclusive politicamente) o Pedro Baptista, um dos enérgicos líderes de uma pequena seita maoísta (fundamentalmente) portuense de que fui, em meia dúzia de casos defensor pro bono em processos estudantis. 

Quando lhe disse como se chamava Stalin, e qual o seu pseudónimo de juventude (Koba) quando assaltava bancos para encher os cofres depauperados do partido, ficou espantado pois nunca tinha lido sequer uma nota biográfica do ditador. E muito menos as suas duas obrinhas sobre a nacionalidades e sobre as questões do leninismo! Isto diz tudo, ou uma boa parte, do estalinismo cardíaco de alguns jovens portugueses que confundiram a sua generosidade com um vago culto da personalidade de um déspota georgiano. De facto o slogan, naquele caso, era um mero desafio a um establishment “revolucionário” consubstanciado pelo PC e aliados. Nada mais. Ainda bem!

 

Vai esta dedicada a um amigo que me ofereceu um livro ontem chegado e que confessou também ele ter usado o mote. Dessa escapei eu, por ser mais velho, por ter lido a tempo alguma história e por ter sido genro de Jorge Delgado (Sérgio na clandestinidade) que conhecia (e detestava) o estalinismo sob todos os ângulos.            

 



publicado por d'oliveira às 17:44
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Terça-feira, 8 de Setembro de 2020
o leitor (im)penitente 219

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Vicente!

mcr, 8 de Setembro de 2020

Ele era uma das caras possíveis, luminosas, apaixonadas, do Jornalismo. Era, digamo-lo sem receio, a honra do jornalismo português. Honra partilhada, evidentemente, basta recordar o Fernando Assis Pacheco, outro morto iluminado e iluminante, e muitos outros, não demasiados, convenhamos que isto é território de índios e cow-boys.

Conheci o Vicente, quando lá pelos inícios de setenta mandei uns textozinhos ao jornal cor de rosa que ele dirigia das lonjuras da Madeira. Eu, desde que “O Comércio do Funchal” começou a ser notado pela coragem, pela irreverência, pela alegria, tornei-me assinante e, não resisti a propor os meus fracos serviços. Tudo começou por um artiguinho sobre o facto de jogadores de futebol conseguirem dar-se bem mesmo sendo de clubes diferentes. Uns indignados resolveram criticar o facto. Queriam sangue e não jantaradas de amigos, uma vez acabado o jogo. Meti-me ao barulho, não resisto a causas perdidas, e lá verti algum sarcasmo e alguma paulada no lombo dos adeptos irascíveis. A coisa saiu e eu fiquei naturalmente contente. E reincidi, reincidi e reincidi. Entretanto a censura entrou em campo e recortava-me a prosa com violência. Da redacção vinha de quando em quando uma palavra amável, estilo “ainda não foi desta mas não desistas”. Claro que eu não desistia, era o que faltava.

Razões de vária ordem fazem com que pouco ou nada reste dessa minha colaboração. A censura e a minha pouca diligência, para não falar num malfadado incêndio onde perdi algumas pastas de prosa e, pior, várias gravuras e serigrafias, uma de Picasso incluída, deixam a posteridade desarmada quanto ao meu génio jornalístico. Paciência...

O 25 A veio, a vida mudou, o Comércio do Funchal também e lá nos perdemos de vista. Por pouco tempo, pois o Vicente, deixou a ilha e instalou-se em “cuba” (cfr o Alberto João Jardim da época, na altura transformado em ferrabrás insular). E começou a época do Expresso que, na altura ainda era recente mas já excelente. E melhorou com o Vicente (estão a topar a rima?)

E o Vicente lá estava, claro. A mesma escrita ágil, o mesmo raciocínio amplo, a mesma ou mais e melhor cultura ao serviço da causa da informação que continuava a ser um território de fronteira onde apareciam umas criaturas, ao serviço do “povo” (um povo inexistente e inventado mas útil para combater a “reacção” sempre multiforme e com mais cabeças do que a hidra) que tentavam acabar com qualquer jornal que não estivesse conforme à verdade a que alguns tinham direito.

Alguns anos depois, a aventura do “Público”, jornal que fiz meu desde o dia primeiro e inaugural. E o Vicente ao leme, com uma equipa de malta nova e entusiasta.

Entretanto, numas férias no Carvoeiro, voltei a encontra-lo graças ao José Luís Nunes que já por cá não anda (e que falta faz!!!) e ao Luís Matias, amigo certo de Lisboa e de Paris.

Foi uma festa.

Não sei se foi ele quem me indicou para cronista regular do Público, operação que se gorou devido a dificuldades financeiras do jornal. Digo isto porque o Vicente era uma das poucas pessoas que me conhecia a prosa desatada e que, melhor ainda, a apreciava. Se não foi peço desculpas a quem se lembrou de mim.

A vida dá voltas e voltinhas, o Vicente parecia um farol, aparecia e desaparecia mas ,como o farol, sempre a indicar a direcção certa, a rota cabal e aventureira. E a dizer as verdades incómodas que fizeram ranger os dentes a muitos políticos, mesmo os que lhe eram próximos.

Nos últimos tempos ia-o lendo no Público, nem sempre concordando mas seguro de uma coisa: o Vicente só escrevia o que acreditava e não fazia fretes.Por isso lia-o com gosto, com avidez e com, como dizê-lo agora?, com antecipadas saudades. 

Agora, hoje, tropeçou na mesquinha. Ora porra!

Quando lá chegares dá um abraço ao Assis e a mais um par de amigos com que partilhei angustias, alegrias, esperanças e muito mais.

Os anos sessenta vão-se diluindo mansa mas inexoravelmente. É a lei da vida, melhor, da morte. Não há volta a dar-lhe.

Adeus, Vicente!



publicado por d'oliveira às 18:03
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Segunda-feira, 5 de Outubro de 2015
estes dias que passam 335

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Quem não quer ver não é teimoso: é cego!

Crónica de uma noite televisiva (19:30 23:30)

 

 

Os sinais foram-se amontoando desde o início do ano.

Com números, sem números, contestáveis ou não, o desemprego baixou.

Baixou mal? Provavelmente, mas baixou.

A compra e o aluguer de habitação aumentaram. Há quem diga que foram os estrangeiros. Só eles?

O consumo interno aumentou e aumentou bastante. Aumentou exponencialmente a venda de automóveis, os produtos brancos perdem terreno face aos produtos de marca, o que significa bastante, o aforro das famílias diminuiu, o que também significa uma eventualmente retoma da confiança dos cidadãos.

Neste exacto momento já parece claro que a coligação PPD-CDS teve a maioria dos votos. Absoluta? É cedo e é improvável.

De todo o modo, das duas hipóteses em jogo, julgo que a pior será a formação de uma coligação negativa, ou seja a de a esquerda global (com todas as suas estrondosas diferenças) dar a António Costa um resultado de vitória na secretaria.

Seria surpreendente que o PC e o BE dessem agora uma mãozinha ao partido que atacaram com extraordinária dureza antes e durante a campanha.

Obviamente, escusava de o escrever (mas à cautela...) não votei na coligação (era o que me faltava!) mas não acreditei em Costa pelo que, pela terceira vez na minha vida eleitoral, votei em branco. Fiz trezentos e tal quilómetros para traçar um cruz raivosa no boletim de voto.

Voto desde que tive essa possibilidade e, nesse capítulo, não esqueço o facto de na única vez que a Oposição (1969) foi às urnas lá estive. Votei e fui delegado à mesa de voto na freguesia de Santo António dos Olivais, em Coimbra. Nas duas prisões que, depois, me caíram em cima, os meus interrogadores bem que recordaram rancorosa e ameaçadoramente esse gesto. Nestes anos post Abril votei quase sempre no PS. É provável que eu tenha mudado mas o PS, infelizmente, não mudou nada. A substituição de Seguro por Costa num processo duvidoso (dar voz a apoiantes cujo estatuto e sinceridade não tinham possibilidade de confirmação) trouxe de novo parte da “tralha” socrática para a ribalta e, sobretudo, perdeu-se num labirinto de denegação do real, de propostas antagónicas e de berraria em vez de argumentos.

Na televisão oiço argumentos espantosos. Parece que o partido mais votado teve uma “estrondosa derrota”! No dizer de dois representantes da esquerda mais clássica e radical isso dá, desde logo, razão às suas campanhas! O representante do BE disse mesmo que o Bloco era o grande vencedor do dia. O delírio entrou em roda livre.

O BE comeu boa parte dos descontentes do PS que não se reviam em costa, que não perdoavam a “traição” a Seguro. Recebeu, não tenho dúvidas, outros votos dos “indignados” que ou não votavam ou displicentemente terão confiado no PPD nas últimas eleições legislativas. Do centro esquerda ao centro diria há mais de meio milhão de votos que se passeiam consoante a conjuntura, as promessas e a aposta. O BE vai saber como funciona esta massa eleitoral acordeão. Volta sim, volta não, muda o sentido de voto.

Mais, é perfeitamente crível que a esmagadora maioria desse voto flutuante que agora caiu no regaço de Catarina Martins não partilhe nenhum dos objectivos essenciais do BE (sobre a dívida, sobe o euro, sobre a europa). O BE estava ali à mão e os cidadãos decidiram mostrar o seu descontentamento. Nesse capítulo o PC é mais fiável: tem um sólido campo eleitoral que varia pouco graças à memória e ao militantismo dos seus eleitores. Tudo isso graças ao facto de se posicionar fora do sistema. Todavia essa vantagem tem um reverso. O PC não intervém na política nacional nem nas grandes escolhas. Está ali, acantonado, a roer as saudades da URSS e do proletariado cada vez mais escasso.

O PC, que pode ser atirado para o quarto lugar (atrás dos “esquerdelhos” , dos padecentes da “doença infantil”), acha que os objectivos da sua campanha foram alcançados ou, pelo menos, foi isso que uma senhora responsável entendeu dizer. Isto que já é a miséria da política mostra bem a “miséria da filosofia” (Marx) em que se enredou o marxismo-leninismo indígena.

De todo o modo, desde a primeira eleição, o PC declara solenemente que ganha. Ganha sempre! Eu também ganho sempre o euro milhões. E a lotaria, a raspadinha... Só perco na vermelhinha, mas de facto nunca me tentei por tal jogo.

No campo socialista, a actriz Maria do Céu Guerra disse o indizível. O povo português (sic) “votou mal”. Citando o poeta, já que não se podem substituir os agentes políticos, estará na ordem do dia “substituir o povo”! Força Céuzinha, força!

Escrevi, há dias, uma crónica sobre a Catalunha onde sublinhava o facto de lá a maioria de votos ser simetricamente contrária à da maioria de mandatos. Todavia, no caso, o que, de facto, se discutia era a independência. E, nesse campo, um voto é um voto haja ou não deputados eleitos. Não contesto nem ninguém contesta a legitimidade dos independentistas para governar a Catalunha. É assim que funciona a democracia. Mesmo quando, no campo dos vencedores há divisões tão ou mais inconciliáveis quanto a que opunha catalanistas a espanholistas.

Entre nós, por muito que pese a certos espontâneos e recentes soberanistas, não se discutia a independência nacional. Setenta a oitenta por cento dos eleitores que se deram ao trabalho de ir votar, deram o seu aval à Europa, ao euro e ao arco da governação. Fingir o contrario é batota burra e cegueira maior.

António Costa, na melhor prestação eleitoral desta campanha (no discurso da assumpção da derrota) disse isso mesmo, recusou demitir-se - como parece ser uma tradição igualmente tonta (em política há altos e baixos, que o digam Churchill ou de Gaulle ou Soares)- e afastou a ideia de uma coligação negativa.

Convenhamos: nem o BE nem o PC realmente a desejavam. Teriam de se molhar, de ir à mesa das negociações, de ceder em pontos fundamentais antes de apoiar no parlamento um PS fragilizado onde alguns contam já as espingardas. Costa, queira ou não, vai ter de enfrentar os seus adversários mesmo se, e foi o caso, estes pouco ou nada fizeram durante a campanha. E não o fizeram porque fiados nas previsões de há vários meses temiam um eventual sucesso do actual líder ou, na hipóteses de uma vitória tangencial, a benevolência de Passos Coelho que recentemente declarara que não “afundaria” sem mais um governo socialista.

Costa, que tem largos anos por diante, já percebeu que não pode dispersar-se por várias frentes. E a interna é urgente. Mesmo vencido nas urnas há que pôr ordem na casa onde crepita uma surda revolta de barões socratistas e seguristas. Há que limpar as cavalariças de Augias, trabalho que Hércules teve de levar a cavo, Até agora, Costa teve via livre. Se quer continuar o seu destino de menino prodígio que entrou para a JS com mimosos catorze aninhos, tem que dar á perna. E, em boa verdade, não se vê no horizonte próximo ou longínquo adversário credível.

Vamos, portanto, ter mais do mesmo, ou quase. A coligação PAF irá tentar governar, terá de negociar mas, se as coisas lhe correram bem, nada a impedirá de, daqui a um ano, dezoito meses, poder, se desafiada, tentar com alguma eventual vantagem uma nova eleição.

Ainda deve haver quem recorde a aventura de Cavaco que, governando em minoria, só precisou de esperar um falso passo de socialistas e eanistas para ganhar com clareza uma reforçada maioria em duas eleições sucessivas.

Perante o que aconteceu, cresce a importância da eleição presidencial. À boca das urnas, o nome de Rebelo de Sousa surge destacado. Depois Maria de Belém Roseira e em terceiro lugar o recém nascido (politicamente falando) Sampaio da Nóvoa. Pessoalmente trata-se de criatura que só teria o meu voto se do outro lado estivesse Santana Lopes. Felizmente não está. Por mim o PS deveria, sem se deixar entreter por tolos cálculos, apoiar Maria de Belém. Tem experiência, tem talento e não é despiciendo o facto de ser mulher. E tem partido, convicções e percurso, tudo coisas que não se viram até agora em Nóvoa, ia a dizer névoa. E desse espesso estado meteorológico nem D Sebastião surde. É tempo de permitir ao ex-reitor da Universidade de Lisboa uma tranquila e apagada jubilação. Tão serena e inconspícua como foi o seu trajecto politico nestes longos anos em que nunca o vimos.

R I P

 

 



publicado por d'oliveira às 17:55
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Sexta-feira, 9 de Maio de 2014
Au bonheur des dames 359

 

 

 Sentado à beira da rua*

 

Estou sentada na esplanada da Benard, numa mesa miraculosamente deixada livre no exacto momento em que, descoroçoado,  sopesava a hipótese de ir beber o meu primeiro café no interior da pastelaria.

De facto o Chiado, mais propriamente o quarteirão compreendido entre a extinta livraria Sá da Costa e o largo de Camões, estava atulhado de gente que ficara de se encontrar por ali à saída do metro ou numa das esplanadas. Grupos inteiros de pessoas, quase todas da minha provecta idade, com cravos ao peito cruzavam-se, encontravam-se, acotovelavam-se, abraçavam-se, às vezes visivelmente comovidos por ainda estarem vivos, por ser 25 de Abril, por se reencontraram depois de tanto tempo, enfim  por um momento felizes e risonhos. O 25 de Abril é isto.

Antes do milagre da mesa vazia e da rapidez estonteante com que me atirei para ela com risco não da vida mas das cansadas canelas que só não embateram numa cadeira por mero acaso, tinha estado na feira dos alfarrabistas, ali a dois passos, na rua Anchieta . “todos os caminhos vão dar à feira”, disse glosando a frase que convocava a malta festiva para o largo do Carmo. “Todos!...” responderam vários dos livreiros que se entreajudavam na montagem das mesas e na colocação dos livros. A feira ia durar seis dias seguidos e os meus amigos vendedores apostavam nos caudais humanos que iam enchendo o largo do Rato e que depois dos discursos provavelmente desembocariam ali. Alguns, enchiam as mesas de livros sobre a efeméride, em pilhas compactas que denunciavam quarenta anos depois o entusiasmo editorial daqueles tempos festivos e alvissareiros. Outros, mais prudentes, entremeavam a avalanche abrilista com os habituais livros que costumam vender. “Amanhã será melhor...”, confidenciou-me um que conhece as minhas manias livreiras. Encomendei-lhe logo um par de títulos para o caso de ele os ter. Prometeu pesquisar a lista que lhe forneci. Na mesa ao lado, encomendei várias separatas do antigo “agrupamento de história da cartografia antiga”, extraordinária coleção de quase 250 títulos de boa e sólida investigação instigada por Luís Albuquerque (amigo do meu pai e depois meu amigo também, encontrado vezes sem conta nas mesas da “Brasileira” coimbrã, sempre amável e pronto a esclarecer dúvidas) e Teixeira da Mota, um sábio lisboeta perito em história da África Ocidental e autor estimabilíssimo.

Esta coleção pode medir-se sem rubor com qualquer outra empreitada estrangeira do mesmo teor e atrevo-me a afirmar que se não é a melhor é seguramente uma das melhores alguma vez publicadas.

Só um povo zombo, desconfiado, atropelado pelas convulsões do presente é que pode desconhecer este esforço estudioso e científico. Somos assim: ignorantes e contentes por o ser. Não admira que da gigantesca bibliografia sobre a “Expansão portuguesa” a grande maioria dos títulos saia para as grandes bibliotecas estrangeiras enquanto por cá andamos embasbacados com uma série de “Mirós” de segunda ou terceira categoria. O 25 de Abril também é isto.

Na mesa da Benard (escolho sempre esta esplanada para ficar o mais longe possível dos músicos de rua que maltratam a arte de Euterpe (tomem lá!...) com requintes de malvadez e de decibéis. Isto para não falar das multidões de turistas que tentam tirar uma fotografia com o Pessoa. Se cada uma destas criaturas comprassem um só livro do poeta que negociata se faria...) vejo uma jovém e bonita mãe com ar desolado de bebé ao colo e mais dois pequenitos pela mão. Está visivelmente cansada, desespera por uma cadeira, eventualmente por um café e por aquietar os dois pequenos terroristas que exigem um bolo. Cavalheirescamente, e com uma imensa saudade dos meus tempos de galã, ofereço-lhe poiso que ela aceita apressadamente. O bebé, logo que se apanha junto à mesa tenta amarfanhar um guardanapo, roubar-me a caneta com que assento algumas impressões destinadas a este texto, virar um copo de água e molhar um dedo no café. Aquilo não é uma criança é um polvo cheio de truques. Os dois maiores já estão a aviar bolos e a misturá-los com um sumo execrável. A jovem mãe, diz que um dos miúdos é de uma amiga que foi num instante ao Carmo para ver como aquilo estava. “Deixou-me este – confidencia-me – porque tinha medo que ele invadisse sozinho o quartel ou fosse puxar pelas patilhas do Vasco Lourenço. Depois, vamos à praia para aproveitar o dia que amanhã trabalha-se”.  Também isto é o 25 de Abril, mesmo se o marido dela estivesse a trabalhar. “com a falta de empregos não se pode dar uma folga mesmo num feriado”, rematou. “Não, claro, não se pode...”, despedi-me.

Sair para Oeiras,  pela marginal num dia daqueles é aventura que não aconselho a ninguém.. A polícia montara um dispositivo tal que só para lá do Principe Real  havia hipótese de descer para a beira rio. Estou habituado a circular em Lisboa mas uma infeliz série de enganos, de polícias a desviar o trânsito e sinais de sentido único  deixaram-me perdido em ruas desconhecidas. Muito a custo voltei ao largo de Camões e zás, ala que se faz tarde, rumo ao rio. Entretanto ia começar uma marcha sobre a antiga sede da pide e a polícia corria com o transito dali para fora. Confesso que, depois dos tempos passados no quarto andar daquela instituição, numa salinha desconfortável de pé e sem dormir durante uns largos dias, deixei pura e simplesmente de frequentar o local. Sei que há por aí uns amadores da “memória” que entendem preservar todos os sítios ligados à repressão do Estado Novo. Por mim, bastam Caxias e Peniche. A inóspita sede da pide não tinha nada de especial, tudo aquilo era inexpressivo, as salas onde se praticavam a “estátua” e o “sono” não tinham nada de invulgar: quatro muros alguma janela, uma porta, uma cadeira para o agente e uma mesa igual a outras. O resto eram as noites e dias sempre iguais com o preso de pé, insone, e de quando em quando um chefe de brigada a trazer uma pergunta. No meu caso, e só desse posso falar, não ocorreu nenhum espancamento, os polícias acreditavam mais na duração da privação de sono e nas dores, essas sim violentas, por se estar sempre de pé. E no isolamento, na angústia de não se saber nada, de desconhecer a acusação, de não se poder comunicar com a família, de se ignorar o que a polícia sabia, o que outros poderiam ter confessado sobre nós. Foi isto que o 25 de Abril acabou. E não é pouco...

Meia hora de para, arranca, “tanto carro!...” diria o tio Quim, também ele veterano, por breves semanas, de Caxias, agora perdido numa outra prisão chamada Alzheimer, “tanto carro”, e é verdade, em quarenta anos passámos do oito ao oitenta, o que pr’aí vai de carros! Mas também isto é o 25 de Abril...

Do Cais do Sodré até à marginal o percurso é feio. Por junto salva-se a zona de Belém (torre e jardins onde se fez a grande exposição dos centenários. Estava cheia de gente ao sol, a passear, crianças por todo o lado, alheias ao milagre dos Jerónimos, ao belo Jardim Tropical (estaria aberto?) e ao Museu da Marinha. E à mastaba que é o Centro Cultural de Belém que custou uma pipa de massa e agora é o sarcófago (ai que egípcio estou!) da coleção Berardo, exemplo acabado do novo-riquismo cultural para admiração de basbaques e de muita gentinha muito post-moderna.

Depois são paredes e paredes de grafittis horrendos. Se isto é liberdade vou ali e já volto. Mas também isto é o 25 Abril. Apesar de tudo, os muros imaculados de outrora não me fazem saudades. Aquele branco era medo puro, respeitinho,  e olhos vigilantes.

E a marginal enfim. Um alegre grupo de ciclistas de várias idades e tamanhos vai preguiçosamente pela faixa da direita. No volante de uma das bicicletas um cesto com um cachorro de focinho ao vento. À frente do grupo um pequerrucho numa bicicleta maior do que ele ornada de uma bandeira multicolorida. Pedala orgulhoso sabendo-se comandante do pelotão. Ora aqui está o 25 de Abril que me agrada. Pessoas que impõem sem violência a sua passada lenta aos automobilistas com nervoso miudinho no acelerador. Esta paisagem, esta estrada é para degustar, para passear, para respirar a maresia que já se sente.

As primeiras nesgas de praia surgem cheias de gente a apanhar o generoso sol de abril. O mesmo sol que testemunhou a marcha das colunas militares, a surpresa dos primeiros espectadores, o entusiasmo, a esperança ainda comedida e os primeiros borbotões da emoção.  Oh que belo dia!

Entretanto Caxias ficou para traz.  Não passo aqui sem recordar os dias, os longos dias, em que de uma janelinha do Reduto Norte via um pouco de rio, outro tanto de autoestrada, os carros e um que outro barco. Aprendi muito da minha actual paciência nessa cela (que a polícia chamava quarto). E a ler os jornais. Minuciosamente. De ponta a ponta, incluindo anúncios, farmácias de serviço e o movimento marítimo. Tentava pôr os nomes que lia nos navios que avistava. E as marés. Fiquei, nessa altura a saber, que consoante a maré os barcos viram.  A polícia permitia ou o “Século” ou o “Diário de Notícias” mas nunca os dois, o que também não era necessário. As notícias eram as mesmas e os artigos de opinião, raros e conformes ao espírito do tempo, também dificilmente se distinguiam. Era assim o 24 de Abril.

Atalho para Oeiras para a casa materna.  O estacionamento hoje é fácil mesmo que o centro comercial esteja mais ou menos cheio. É um pequeno centro, com um supermercado como loja âncora. Há bicha em todas as caixas que muita gente aproveita a manhã para fazer as compras da semana. Também isto é o 25 de Abril. Usar o tempo livre do feriado para fazer o que não se pode noutros dias.

No centro há novidades. A pastelaria que tinha fechado, está de novo aberta com outro nome e decoração.  O pequeno café de um antigo empregado, continua a funcionar e sou informado que tudo lhe corre bem. É bom saber isto, que uma vítima do fecho da pastelaria conseguiu dar uma volta à crise. “E vou ter uma ajudante”, revela-me orgulhoso. “Que não seja a recibo verde” reponto. Ele ri-se. “Vamos lá a ver...Nunca se sabe”.

No lugar da livraria abriu uma loja com o apelativo e gasto nome de “Elite”. Boa sorte.  E mais adiante, alguém abriu um pequeno estanco “gourmet”. Azeite, vinhos, biscoitos, chás e cafés.  Compro umas embalagens de chá branco (em saquetas, ainda não têm de folha mas prometem que para a próxima...) e uns biscoitos que prometem. Não sabem como os de antigamente mas estes novos tempos apressados já não são para essas especialidades. A democratização do biscoito não os tornou baratos mas também não os melhorou. Com ou sem 25 de Abril este era o destino fatal dos biscoitos de azeite. Homogeneizados, menos sápidos e menos duros. Ainda bem que os meus dentes já não são o que eram. Demasiados abris...

Passam duas raparigas sumariamente vestidas. Lembro-me do meu Pai, olho sempre atento, no barco que nos levava a Moçambique: Aquilo ia cheio de moçoilas em flor que ele chamava “as tenras”. Quarentão sedutor, desculpava-se, não fosse a minha Mãe enxofrar-se “A boi velho erva tenra!”

O mesmo dizia o Rui Feijó, que há quarenta exactos anos me acompanhou numa aventura abrilista e conspirativa que já por aqui contei. Durante todos os anos posteriores que viveu, telefonava-me comemorativo, evocando a nossa modestíssima colaboração revolucionária: “Ao fim e ao cabo, valeu a pena, não achas?” –“Claro que valeu, Rui, querido e desaparecido amigo, claro que valeu...” E valeram sobretudo aquelas dezenas de anos de amizade, discussão, de longa rememoração dos anos luminosos e difíceis do primeiro neo-realismo, do MUD, da longa resistência, da solidariedade e da generosidade com que acolhia fugidos na sua quinta da Senhora Aparecida, coisas que ele contava desenfadadamente, modestamente, como se o permanente risco que corria fosse de somenos. Agora já não telefona, mesmo que ao cair da tardinha, sem querer, sem me lembrar, eu espere a sua voz doce e cansada e a sua pergunta mais retórica que essencial, começo sempre de uma longa conversa que agora me faz tanta falta.

E é este o momento mais importante do dia 25 de Abril. A recordação do Rui, do Luís Albuquerque, do tio Marcos, do Joaquim Namorado, do Jorge Delgado e de tantos outros amigos mais velhos que me ensinaram quase tudo e a cuja memória tento ser fiel. De certo modo, pela sua encarniçada resistência, pela sua partilhada esperança, pelo seu sacrifício, pela dignidade com que viveram, pela generosidade com que me aturaram, são eles de facto, o verdadeiro espírito do 25 de Abril. 

A noite chega, depois dela a madrugada e temos a certeza de que ninguém virá por nós, bater-nos à porta, à hora do leiteiro, para nos levar para parte incerta. E isso é também, e principalmente, o 25 de Abril.

 



publicado por d'oliveira às 11:38
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Terça-feira, 17 de Janeiro de 2012
estes dias que passam 262

Revisões da matéria dada

 

 

 

A política nacional (mas não só...) tem dado azo a situações bizarras. Como se sabe, existe, de há seis meses a esta parte um novo governo no abençoado país dos egrégios avós. Dizer que esse governo corresponde a um movimento de fundo da sociedade portuguesa parece ser um forte exagero. O dr Passos Coelho está lá porque o eventualmente diplomado antecessor criou tantos e tais anticorpos que reduziu a sua anterior maioria a um desesperado quadrado de fieis defuntos que o acompanharam em hossana nos últimos meses do seu lúgubre reinado. Pior ainda: o autismo do anterior primeiro ministro e a encarniçada predisposição para o autoritarismo fizeram com que no seu campo rareassem os substitutos a menos que se ache que os dois últimos candidatos a Secretário Geral tinham espessura que se visse para as tarefas titânicas que se anteviam. Não tinham, claro. Ganhou o que fazia menos ondas e que melhor gerira o silêncio. Ganhou, aliás, um presente envenenado: com efeito os deputados com  que conta não sentem por ele na generalidade qualquer carinho, muito menos respeito. Só por ironia do destino o dr Seguro se pode sentir tranquilo com aquela indisciplinada turbamulta que herdou do antecessor.

 

No que toca ao cavalheiro que faz as vezes de Primeiro Ministro, a situação não é melhor. Bem vistas as coisas, nem ele acreditava que o poder lhe caísse em cima assim tão de repente. Esperava que Sócrates se aguentasse mais uns meses, quiçá um ano, até sair esmagado pela avalanche que não previra, não sentira vir e não sabia conter. Sócrates caiu antes. Antes do incumbente ter firmado o seu poder, antes de se ter libertado de alguns conspiradores que com ele prepararam a queda da drª Ferreira Leite, a mal amada. O dr Passos (apressados) nem sequer tinha tido tempo de estudar a situação a que só um enfatuamento excessivo e maligno o fazia pensar que seria capaz de controlar. De resto, o dr Passos Coelho, espelho, aliás, do dr Seguro, acedera ao poder dentro do PSD como uma espécie de solução provisória enquanto os barões contavam espingardas e dividiam os restos da horda cavaquista.

 

Basta atentar na composição do actual Governo para perceber que o poder de Passos (inseguros) é periclitante e que, mesmo no seu centro, há criaturas que refreiam sem grande disfarce a ambição.

 

Dizer isto é, porém, um risco. Haverá leitores que dirão que estou a desculpar Passos, enquanto outros acharão que prossigo obscuras agendas a favor de uma qualquer oposição. Lamento muito, mas não dou para esses dois peditórios. Esforço-me por olhar Portugal com a mesma curiosidade com que olho qualquer outro país. Com a vantagem de lhe conhecer a língua, a história pregressa e a grande maioria (e nem são assim tantos) dos que jogam aos quatro cantinhos tentando arrecadar para si e para a respectiva clientela a melhor parte do bolo exíguo que há para dividir.

 

Portugal é, neste momento, um país endividado. Não tem dinheiro em caixa para mandar tocar um cego. A horrível troika concede-lhe à justa os trocos suficiente para pagar as facturas da água gás e electricidade, melhor dizendo para pagar as importações absolutamente essenciais e pagar aos funcionários públicos, aos pensionistas e pouco mais. O acordo celebrado com os seus novos credores foi-o em estado de necessidade. E não será neste, nem no(s) próximo(s) ano(s) que levantará a cabecinha louca e gastadora. Soluções de fundo são coisa para demorar largo tempo enquanto a necessidade horrível de arranjar uns trocos para o jantar de hoje e o almoço de amanhã lhe retira quase todo o tempo.

 

Portanto, andar por aí a pedir novo acordo, a denunciar o actual, a ameaçar os banqueiros estrangeiros é um exercício sem sentido, sem conteúdo e que não convence sequer os virtuosos proponentes.

 

E, ainda por cima, muitas das mezinhas que para aí vejo vagamente recomendadas são de curto efeito. A agricultura nunca nos fará sair da importação de alimentos, a pesca, mesmo crescendo, necessita de meios vultuosos que não há, e quanto a  indústria é o que se sabe. O povo miúdo, que tem destas coisas uma visão muito terra a terra, não precisou das exortações de Passos para começar a emigrar. De há vários anos a esta parte saem pontualmente dezenas de milhares de trabalhadores. E não são diplomados. É gente de todas as profissões, sobretudo das modestas, das que fazem falta cá e lá fora. Já se foi o meu carpinteiro, o meu barbeiro, ele mesmo emigrante sérvio naturalizado português, a senhora que me vendia fruta, o marido da peixeira Rosa e um empregado do quiosque onde compro os jornais. E duas colegas, essas licenciadas, da minha enteada. E a minha sobrinha, geóloga com emprego cá mas que acredita que tem mais futuro lá fora. Está na Guiné (Conakry) no meio da selva, aprende chinês e soussou (língua local) e orgulha-se da equipa que formou. O irmão parte em breve para Tunes para fazer um up-grade de árabe, curso que concluiu há pouco ao mesmo tempo que se formava em antropologia e prepara o mestrado e, eventualmente, o futuro doutoramento.

 

Não estou a fazer a apologia da emigração, constato um facto que os números diariamente acessíveis demonstram à evidência. Portugal foi sempre, desde a época áurea dos descobrimentos, um exportador de gente. A Ásia, depois o Brasil, seguidamente a África e finalmente a Europa nos anos cinquenta e seguintes. E a América do Norte ou o Canadá que volta e meia nos devolvem emigrantes que nunca apoiámos nem entusiasmámos a defender-se nessas terras.  Saberão os leitores que já há em Angola quase cem mil portugueses? Há trinta e poucos anos a debandada não deixara sequer mil no território. Regista-se em todos os tradicionais países de acolhimento de compatriotas nossos um continuado acréscimo de novas chegadas. E não começaram ontem, no mês passado ou no ano passado. Ou sequer há dois ou três anos. Tentar impontar para este (ou mesmo para o anterior) Governo a responsabilidade desta debandada é mera ignorância ou simples má fé. Provavelmente, foi na dobra do século que se reactivou este tradicional movimento para fora. Exactamente no momento em que se começaram a notar-se os primeiros sintomas de estrangulamento da nossa débil economia.

 

A terceira questão que gostaria de apontar é esta: nunca a televisão (as televisões) contou com tantos comentadores da res publica. E pagos ainda por cima. Já ninguém (e muito menos eu que aturo pouco os exercícios de futurologia e as defesas pro domo mea) consegue ver e ouvir tanta e tão ilustrada gente. Sobretudo porque muitos dos ouvintes não gostam do que ouvem. Nem do que lêem, já agora. Sobretudo se as criaturas opinantes estão fora dos habituais esquemas políticos. Se são franco-atiradores sem cartão partidário. Nesse capítulo a execração pública vai sobretudo contra António Barreto, Vasco Pulido Valente e Medina Carreira. Uns são, na opinião da híper-crítica, opinadores dissolventes, corrosivos, que só dizem mal da pátria amorável. Outros são estrangeirados, com toda a carga negativa que desde o século XVIII isso tem. A Medina Carreira ouvi há pouco chamar-lhe “populista”!  E isso não vinha da boca de um pateta mas de uma pessoa normalmente interessante e interessada. Que, aliás, juntava a essa extraordinária acusação estoutra: Medina seria um zero em Economia! 

 

Eu fico sempre estupefacto com o à-vontade com que se lançam tais bulas excomunicatórias. No meu caso, para não ir mais longe, não gosto de Saramago, de Agustina e do fado. Não gosto, pronto. Nunca, porém, me lembraria de dizer que Saramago ou Agustina são dois sandeus que não acertam sequer numa redacção sobre flores ou que o fado é mais horrendo do que o chiar de um carro de bois (perdoem-me os amantes da ruralidade, do telúrico do genuíno). Como não me atreveria, ainda por cima depois de morto o homem, a dizer que Fraga Iribarne era um bandido dos quatro caminhos e um fascista pior do que Milan d’Astray.

 

Ora ocorre, e isto é uma apostilha ao que atrás disse, que em Portugal, mesmo entre gente que merece respeito pela cultura, pela inteligência e pelo trabalho, a desqualificação de quem não pensa como nós é ponto de honra.

 

Resta, para terminar um outro desporto nacional. Se alguém não diz exactamente aquilo que queríamos ouvir, então está a dizer muito mais coisas (todas péssimas) do que o que à primeira vista se lê no texto. Volta e meia sou disso acusado por algum leitor que faz o favor (e me dá a honra) de me ler. Provavelmente, o meu modo um tanto ou quanto anárquico de escrever dará azo a tais conclusões. Gostaria, no entanto, de dizer que não mando setas escondidas a quem quer que seja nem defendo ou ataco encapotadamente o que quer que seja. Neste capítulo, sou mais pão, pão, queijo, queijo. Que diabo ao fim de tanto texto (e tantas, demasiadas, palavras) gostaria que só lessem o que escrevo. Nem mais nem menos.

 

Começo a pensar (e a recordar) que entre os salvadores da pátria que se perfilam por aí, ninguém faz qualquer espécie de proposta salvífica que oriente os ceguinhos que governam. Ora, já o anterior Governo, e porventura os mais atrás, comparecia frente ao povo atacando a falta de conteúdo das declarações dos adversários.

 

Eu citaria, caso não fosse um exercício ocioso, novamente Eça (“Uma campanha alegre” 1º vol., crónica de Maio de 1871).

 

Convenhamos que cento e quarenta anos depois não se adiantou muito se é que sequer se progrediu. 

 



publicado por d'oliveira às 23:08
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Segunda-feira, 23 de Março de 2009
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