Chuva e outras ocorrências
mcr, 22-11-22
ao acabar de datar o folhetim reparo que existeuma capicuao que significaria um dia de sorte. À cautela joguei no euro-milhões mesmo se as leis da estatística joguem todas contra mim. Nisto acabo por ser tão português como o resto dos meus compatriotas que acreditam sempre num bafejo da sorte mesmo à ultima da hora. De todo o modo, também é verdade que quem não se habilita não ganha...
Também não vale pedir a ajuda divina pois sou um réprobo comprovado desde a minha longínqua juventude. Isto de ter andado, ainda que brevemente, de má vontade e com expulsões finais, durante dois anos , em colégios com padres a chatear, bastou-me para perder a escassa fé e a pouquíssima vontade de ir à missa.
Todavia, encaro o mau tempo que faz com evangélica paciência. Sei que a chuva é precisa e de que maneira! E duvido que o que já caiu tenha composto convenientemente as barragens.
A CG queixa-se do mau tempo, dos dias escuros, do mar que se não avista, sei lá do que mais.
Para ela, o mundo seria bem mais agradável se cumprisse o dito (também ele muito português) de “sol na eira e chuva no nabal “. Conheço gente que propões chuva à noite, se possível entre a meia noite e as seis da manhã. Dava para lavar as ruas e regar os jardins enquanto os enérgicos cidadãos dormiam o sono dos (in)justos. Sempre que chego à esplanada (na parte protegida, claro) oiço criaturas a protestar contra o tempo e a afirmar convictamente que já chove há imenso tempo.
Só lhes falta dizer que estamos prestes a criar guelras!
Isto que vou ouvindo passa-se num país com um clima, apesar de tudo invejável. Imgine-se por momentos que isto era como a Ucrânia onde já neva. Imagine-se o que será viver em casas com vidros estilhaçados, sem água corrente e sem electricidade. É isto o dia a dia de pelo menos dez milhões de pessoas, tantas quanto a população portuguesa.
Um país onde 30 ou 40% das instalações de fornecimento eléctrico estão destruídas graças aos misseis russos, aos drones iranianos que chovem por uma pá velha. A “operação especial” que ia libertar as populações oprimidas pelo infrene regime neo-nazi, opressor da língua russa e da religião ortodoxa, traduz-se, cada vez mais superlativamente, numa política de destruição absoluta, de terra queimada, de genocídio, de crimes de guerra. A coisa é de tal modo que até o nóvel Secretário Geral do PCP já usou, e por duas vezes, a palavra “invasão”! Pelos vistos, “he saw the Light” como se canta num spiritual. Demorou quase nove meses a parir esta simples descrição mas antes tarde do que nunca. O camarada Jerónimo agora entregue a outras e mais simples tarefas deve estar a revolver-se. E a escassa rapaziada “russista” lá tem de meter a viola (ou a balalaika) no saco. Que maçada.
E a chuva a dar-lhe forte e feio.... Oh que tempos difíceis!. Se Portugal não ganha ao Gana estamos feitos ao bife. E o Sr Presidente lá regressa de monco caído. (Só por isso atrevo-me a augurar uma impatriótica derrota!).
Entretanto com chuva ou sem ela, os preços vão subindo com uma constância exemplar. O Professor Doutor Teixeira Ribeiro, uma das merecidas glórias de Coimbra, dizia que “a inflação crescia como nódoa de azeite num pano” Nunca encontrei melhor expressão para descrever este fenómeno.
Eu confesso que, perante esta situação, emudeço absolutamente. Não é por humildade mas tão só por ignorância. Todavia, o que mais me preocupa é que enquanto confesso a a minha total incompetência, assisto a uma miríade de luminárias que sabem tudo, propõem tudo e clamam por medidas que, à primeira vista, parecem pouco eficazes ou aceleradoras da inflação. Assistir aos debates na AR e medir a propostas sugeridas atormenta o mais pintado. Com tantos sábios a nau perde-se e com ela a cara e a tripulação. Tremo só de pensar no que seria se estivéssemos fora da Europa, das suas instituições como é repetidamente exigido por uma minoria ruidosa e ignorante.
O que nos vale é o Qatar e o futebol. E o Cristiano Ronaldo... E a Senhora de Fátima... E a “santinha da Ladeira”, já agora, (nunca se sabe se ela não será providencial)...
De todo o modo antes isto que estar na Ucrânia.
(o título é uma homenagem a um dos grandes livros de Somerset Maugham que se intitula "Chuva e outras novelas" A peça que dá título ao livro é uma das melhores novlas que alguma vez li. Porventura a melhor!
Eu também não!
mcr, 11-9-22
No Público de Sábado, Pacheco Pereira vem dizer algo que deveria ser óbvio mas, pelos vistos, não é.
Declara que não pede desculpas por Wiriamu por duas especiais razões: porque esteve sempre contra a guerra e porque não faz sentido fazer um povo, um país inteiro responder por um acto criminoso, cometido em tempo de guerra por um reduzido número de soldados.
É verdade que o Governo da altura escondeu tanto quanto pode a história deste massacre numa guerra em que, dos dois lados os houve com fartura. Falo da guerra de África em geral e não de Moçambique em particular.
Por muitas razões de queixa que a UPA, (arvorando-se de certo modo em representante única das populações angolanas) tivesse, os massacres do início da guerra onde pereceram brancos e, sobretudo, (é bom não esquecer) muito mais negros barbaramente assassinados é um massacre absurdo e indesculpável. Pior deu azo a uma repressão medonha e marcou definitvament o cunho de uma guerra onde cad barbaridade justificava outra. Pode haver quem finja esquecer mas a pqlavra de ordem “para Agol depressa e em força” teve um profundo eco nacional e um fortíssimo poio popular. Foram precisos mais de dez anos de uma gurra onde quase se não via o inimigo para lentamente mudar a opinião de muitos portugueses. O massacre do norte de Angola (que, aliás, poderia responder aos massacres de Icolo e Bengo de quem quase ninguém fala)) pelos vistos, foi varrido para debaixo do tapete.
Deixemo-nos de conversa barata: as guerras são o campo ideal para tudo e sobretudo para a barbaridade. Um massacre leva a outro o que não desculpa nem o primeiro nem o segundo. Nem os que se lhe seguem.
Para isso, ao longo dos séculos, foi-se tentando impor regras, leis de guerra, defesa das pessoas civis ou soldados. Conviria lembrar que, por exemplo, a guerra em 1385 ou em 1640 era diferente da guerra contra os invasores franceses (e bem nos lembramos de populações portuguesas a chacinar, podendo, qualquer criatura que falasse “estrangeiro” o que levou o Exército inglês a tentar pôr um férreo e duro travão a certas milícias populares.
Está à vista o que se passa, neste exacto momento na Ucrânia onde uma horda invasora mata, pilha, devasta. É provável que resistentes ucranianos também não diferenciem o soldado russo que se rende do outro que dispara.
A famosa teoria do pedido de desculpas cujo episódio mais significativo (que me lembre...) é o do dr. Mário Soares a pedir perdão pelo massacre de judeus em Lisboa quando é sabido que a justiça real foi rápida em condenar, perseguir e punir os autores de assassínios e pilhagens (e aqui havia também muito estrangeiro embarcadiço no porto de Lisboa que ajudou à selvajaria e colaborou com a imbecilidade criminosa de um par de beatos na Igreja de S Domingos).E que, aproveitou para roubar o que pode de bens de cristãos novos ou de alguém que pudesse ser tomado como tal.
Convenhamos que quase 500 anos depois, as desculpas não fazem sentido. É um gesto semelhante à ordem de Xerxes para chicotear o mar...
Como Pacheco Pereira, recuso qualquer espécie de responsabilidade nessa história infame. Estive sempre do lado contrário à guerra e àditadura, não lutei em África por um bambúrrio (fui à inspecção antes da guerra estalar e fiquei “livre”) fui perseguido pelas minhas convicções e mais ainda pelas minhas acções que me levaram a Caxias por diversas vezes. Tenho na torre do Tombo 14 processos contra mim, foi-me interdita a entrada na carreira diplomática e por aí fora. No capítulo especificamente colonial, passei desertores pela fronteira e inclusive ajudei resistentes angolanos (um deles já com anos de Tarrafal) a tomar o mesmo caminho.
Depois, nada tendo a ver com o crime, também não posso em consciência apontar o dedo ao milhão de portugueses que fizeram, forçados quase todos, a guerra colonial. Guerra que, aliás, os 2militares de Abril também fizeram anos a fio.
O dr. Costa, filho de um oposicionista goês que terá militado nos “satiagrah” e que depois veio viver pra Portugal, resolveu pedir desculpa em Moçambique. É com ele mas de certeza não é comigo, nem com uma imensa maioria de portugueses que, seguramente, não aplaudiram a cobarde matança de Wiriamu. É verdade que não se revoltaram mas eu gostaria de ver (e sou boa testemunha desses tempo) quantos dos actuais “heróis” anti-fascistas que por aí pululam, seriam capazes sequer, de participar numa campanha promotora do voto nos anos que medeiam entre 1961 e 1974.
Lembraria que depois da revolução ninguém se lembrou (ou quis) investigar os factos (que eram recentes), identificar os principais responsáveis pela chacina, punir os deveriam ter sido punidos. E nesse “ninguém” estavam, estão ainda, todos quantos ocuparam cargos políticos em Portugal
Querem ajudar Moçambique, ou as populações moçambicanas? Então, quanto mais não seja, ajudem a construir escolas, postos médicos a desminar milhares, centenas de milhares de hectares de solo agrícola. O resto é conversa e patacoadas.
Advertência necessária: Wiriamu foi uma absoluta infâmia que, como se vê, atinge sem distinção portugueses e africanos pro-portugueses, incluindo os que se opunham à guerra e ao regime colonial e trouxe o luto a centenas de famílias negras da região de Tete. Nunca é demais recordar esta tragédia mas conviria separar o trigo do joio.
No meu caso e no de muitos outros amigos e camaradas da altura a denúncia foi imediata e as consequências disso foram as que se esperavam. Repressão, prisão e proibição de acesso a empregos dependentes do Estado ou da Administração para estadual.
Tentei pesquisar o que sucedeu à famosa 6ª Companhia de Comandos, tentei saber quem eram os seus participantes mas ou por ocultamento oficial ou por inabilidade minha nada obtive de concreto.
Em boa verdade, cinquenta anos depois de Abril continuam escondidos factos e nomes de agentes da repressão a começar por milhares de informadores da polícia e denúncias de traidores presos e que colaboraram com a pide. Tenho a profunda convicção que toda esse gente continuou a sua vidinha sem problemas, cruzando-se porventura com as vítimas da sua miserável actuação durante os anos em que informaram e denunciaram milhares de cidadãos seus conhecidos. O tempo que já passou ajudou a limpar a memória tanto quanto a apressada inscrição em partidos post-25 Abril que nunca se preocuparam em saber quem eram e donde vinham tantos “democratas” de pura cepa.
A mesma espessa cortina de silêncio caiu sobre uma larga maioria de “revolucionários” da 25ª hora que, durante o PREC e nos anos seguintes, levaram a cabo acções terroristas de toda a espécie e terão as mãos sujas de sangue inocente. Igualmente estão por identificar os novos “pides” que logo a seguir ao 25 de Abril andaram à caça de “reaccionários” que foram presos sem quaisquer garantias de defesa e sem direitos mínimos, presos também eles em consequência de denúncias anónimas ou por mera suspeita devido ao estatuto social, a anteriores cargos de importância na Banca e nos negócios. A quase total maioria destes presos foi aliás libertada sem uma palavra, uma acusação e, muito menos sem um processo.
Longe de mim pretender, agora, 50 anos depois levar a cabo um processo quer do Estado Novo quer das misérias militares ocorridas. É tarde, provavelmente vítimas e testemunhas desapareceram ao mesmo tempo que tantos anos depois poderão ter desaparecido torcionários e criminosos e respectivo séquito de denunciantes, informadores e traidores. E é por isso que acções individuais e descontextualizadas merecem escasso ou nenhum crédito.
O dr. Costa poderá, querendo, pedir as desculpas que entender mas em meu nome não.
Sentado à beira da rua*
Estou sentada na esplanada da Benard, numa mesa miraculosamente deixada livre no exacto momento em que, descoroçoado, sopesava a hipótese de ir beber o meu primeiro café no interior da pastelaria.
De facto o Chiado, mais propriamente o quarteirão compreendido entre a extinta livraria Sá da Costa e o largo de Camões, estava atulhado de gente que ficara de se encontrar por ali à saída do metro ou numa das esplanadas. Grupos inteiros de pessoas, quase todas da minha provecta idade, com cravos ao peito cruzavam-se, encontravam-se, acotovelavam-se, abraçavam-se, às vezes visivelmente comovidos por ainda estarem vivos, por ser 25 de Abril, por se reencontraram depois de tanto tempo, enfim por um momento felizes e risonhos. O 25 de Abril é isto.
Antes do milagre da mesa vazia e da rapidez estonteante com que me atirei para ela com risco não da vida mas das cansadas canelas que só não embateram numa cadeira por mero acaso, tinha estado na feira dos alfarrabistas, ali a dois passos, na rua Anchieta . “todos os caminhos vão dar à feira”, disse glosando a frase que convocava a malta festiva para o largo do Carmo. “Todos!...” responderam vários dos livreiros que se entreajudavam na montagem das mesas e na colocação dos livros. A feira ia durar seis dias seguidos e os meus amigos vendedores apostavam nos caudais humanos que iam enchendo o largo do Rato e que depois dos discursos provavelmente desembocariam ali. Alguns, enchiam as mesas de livros sobre a efeméride, em pilhas compactas que denunciavam quarenta anos depois o entusiasmo editorial daqueles tempos festivos e alvissareiros. Outros, mais prudentes, entremeavam a avalanche abrilista com os habituais livros que costumam vender. “Amanhã será melhor...”, confidenciou-me um que conhece as minhas manias livreiras. Encomendei-lhe logo um par de títulos para o caso de ele os ter. Prometeu pesquisar a lista que lhe forneci. Na mesa ao lado, encomendei várias separatas do antigo “agrupamento de história da cartografia antiga”, extraordinária coleção de quase 250 títulos de boa e sólida investigação instigada por Luís Albuquerque (amigo do meu pai e depois meu amigo também, encontrado vezes sem conta nas mesas da “Brasileira” coimbrã, sempre amável e pronto a esclarecer dúvidas) e Teixeira da Mota, um sábio lisboeta perito em história da África Ocidental e autor estimabilíssimo.
Esta coleção pode medir-se sem rubor com qualquer outra empreitada estrangeira do mesmo teor e atrevo-me a afirmar que se não é a melhor é seguramente uma das melhores alguma vez publicadas.
Só um povo zombo, desconfiado, atropelado pelas convulsões do presente é que pode desconhecer este esforço estudioso e científico. Somos assim: ignorantes e contentes por o ser. Não admira que da gigantesca bibliografia sobre a “Expansão portuguesa” a grande maioria dos títulos saia para as grandes bibliotecas estrangeiras enquanto por cá andamos embasbacados com uma série de “Mirós” de segunda ou terceira categoria. O 25 de Abril também é isto.
Na mesa da Benard (escolho sempre esta esplanada para ficar o mais longe possível dos músicos de rua que maltratam a arte de Euterpe (tomem lá!...) com requintes de malvadez e de decibéis. Isto para não falar das multidões de turistas que tentam tirar uma fotografia com o Pessoa. Se cada uma destas criaturas comprassem um só livro do poeta que negociata se faria...) vejo uma jovém e bonita mãe com ar desolado de bebé ao colo e mais dois pequenitos pela mão. Está visivelmente cansada, desespera por uma cadeira, eventualmente por um café e por aquietar os dois pequenos terroristas que exigem um bolo. Cavalheirescamente, e com uma imensa saudade dos meus tempos de galã, ofereço-lhe poiso que ela aceita apressadamente. O bebé, logo que se apanha junto à mesa tenta amarfanhar um guardanapo, roubar-me a caneta com que assento algumas impressões destinadas a este texto, virar um copo de água e molhar um dedo no café. Aquilo não é uma criança é um polvo cheio de truques. Os dois maiores já estão a aviar bolos e a misturá-los com um sumo execrável. A jovem mãe, diz que um dos miúdos é de uma amiga que foi num instante ao Carmo para ver como aquilo estava. “Deixou-me este – confidencia-me – porque tinha medo que ele invadisse sozinho o quartel ou fosse puxar pelas patilhas do Vasco Lourenço. Depois, vamos à praia para aproveitar o dia que amanhã trabalha-se”. Também isto é o 25 de Abril, mesmo se o marido dela estivesse a trabalhar. “com a falta de empregos não se pode dar uma folga mesmo num feriado”, rematou. “Não, claro, não se pode...”, despedi-me.
Sair para Oeiras, pela marginal num dia daqueles é aventura que não aconselho a ninguém.. A polícia montara um dispositivo tal que só para lá do Principe Real havia hipótese de descer para a beira rio. Estou habituado a circular em Lisboa mas uma infeliz série de enganos, de polícias a desviar o trânsito e sinais de sentido único deixaram-me perdido em ruas desconhecidas. Muito a custo voltei ao largo de Camões e zás, ala que se faz tarde, rumo ao rio. Entretanto ia começar uma marcha sobre a antiga sede da pide e a polícia corria com o transito dali para fora. Confesso que, depois dos tempos passados no quarto andar daquela instituição, numa salinha desconfortável de pé e sem dormir durante uns largos dias, deixei pura e simplesmente de frequentar o local. Sei que há por aí uns amadores da “memória” que entendem preservar todos os sítios ligados à repressão do Estado Novo. Por mim, bastam Caxias e Peniche. A inóspita sede da pide não tinha nada de especial, tudo aquilo era inexpressivo, as salas onde se praticavam a “estátua” e o “sono” não tinham nada de invulgar: quatro muros alguma janela, uma porta, uma cadeira para o agente e uma mesa igual a outras. O resto eram as noites e dias sempre iguais com o preso de pé, insone, e de quando em quando um chefe de brigada a trazer uma pergunta. No meu caso, e só desse posso falar, não ocorreu nenhum espancamento, os polícias acreditavam mais na duração da privação de sono e nas dores, essas sim violentas, por se estar sempre de pé. E no isolamento, na angústia de não se saber nada, de desconhecer a acusação, de não se poder comunicar com a família, de se ignorar o que a polícia sabia, o que outros poderiam ter confessado sobre nós. Foi isto que o 25 de Abril acabou. E não é pouco...
Meia hora de para, arranca, “tanto carro!...” diria o tio Quim, também ele veterano, por breves semanas, de Caxias, agora perdido numa outra prisão chamada Alzheimer, “tanto carro”, e é verdade, em quarenta anos passámos do oito ao oitenta, o que pr’aí vai de carros! Mas também isto é o 25 de Abril...
Do Cais do Sodré até à marginal o percurso é feio. Por junto salva-se a zona de Belém (torre e jardins onde se fez a grande exposição dos centenários. Estava cheia de gente ao sol, a passear, crianças por todo o lado, alheias ao milagre dos Jerónimos, ao belo Jardim Tropical (estaria aberto?) e ao Museu da Marinha. E à mastaba que é o Centro Cultural de Belém que custou uma pipa de massa e agora é o sarcófago (ai que egípcio estou!) da coleção Berardo, exemplo acabado do novo-riquismo cultural para admiração de basbaques e de muita gentinha muito post-moderna.
Depois são paredes e paredes de grafittis horrendos. Se isto é liberdade vou ali e já volto. Mas também isto é o 25 Abril. Apesar de tudo, os muros imaculados de outrora não me fazem saudades. Aquele branco era medo puro, respeitinho, e olhos vigilantes.
E a marginal enfim. Um alegre grupo de ciclistas de várias idades e tamanhos vai preguiçosamente pela faixa da direita. No volante de uma das bicicletas um cesto com um cachorro de focinho ao vento. À frente do grupo um pequerrucho numa bicicleta maior do que ele ornada de uma bandeira multicolorida. Pedala orgulhoso sabendo-se comandante do pelotão. Ora aqui está o 25 de Abril que me agrada. Pessoas que impõem sem violência a sua passada lenta aos automobilistas com nervoso miudinho no acelerador. Esta paisagem, esta estrada é para degustar, para passear, para respirar a maresia que já se sente.
As primeiras nesgas de praia surgem cheias de gente a apanhar o generoso sol de abril. O mesmo sol que testemunhou a marcha das colunas militares, a surpresa dos primeiros espectadores, o entusiasmo, a esperança ainda comedida e os primeiros borbotões da emoção. Oh que belo dia!
Entretanto Caxias ficou para traz. Não passo aqui sem recordar os dias, os longos dias, em que de uma janelinha do Reduto Norte via um pouco de rio, outro tanto de autoestrada, os carros e um que outro barco. Aprendi muito da minha actual paciência nessa cela (que a polícia chamava quarto). E a ler os jornais. Minuciosamente. De ponta a ponta, incluindo anúncios, farmácias de serviço e o movimento marítimo. Tentava pôr os nomes que lia nos navios que avistava. E as marés. Fiquei, nessa altura a saber, que consoante a maré os barcos viram. A polícia permitia ou o “Século” ou o “Diário de Notícias” mas nunca os dois, o que também não era necessário. As notícias eram as mesmas e os artigos de opinião, raros e conformes ao espírito do tempo, também dificilmente se distinguiam. Era assim o 24 de Abril.
Atalho para Oeiras para a casa materna. O estacionamento hoje é fácil mesmo que o centro comercial esteja mais ou menos cheio. É um pequeno centro, com um supermercado como loja âncora. Há bicha em todas as caixas que muita gente aproveita a manhã para fazer as compras da semana. Também isto é o 25 de Abril. Usar o tempo livre do feriado para fazer o que não se pode noutros dias.
No centro há novidades. A pastelaria que tinha fechado, está de novo aberta com outro nome e decoração. O pequeno café de um antigo empregado, continua a funcionar e sou informado que tudo lhe corre bem. É bom saber isto, que uma vítima do fecho da pastelaria conseguiu dar uma volta à crise. “E vou ter uma ajudante”, revela-me orgulhoso. “Que não seja a recibo verde” reponto. Ele ri-se. “Vamos lá a ver...Nunca se sabe”.
No lugar da livraria abriu uma loja com o apelativo e gasto nome de “Elite”. Boa sorte. E mais adiante, alguém abriu um pequeno estanco “gourmet”. Azeite, vinhos, biscoitos, chás e cafés. Compro umas embalagens de chá branco (em saquetas, ainda não têm de folha mas prometem que para a próxima...) e uns biscoitos que prometem. Não sabem como os de antigamente mas estes novos tempos apressados já não são para essas especialidades. A democratização do biscoito não os tornou baratos mas também não os melhorou. Com ou sem 25 de Abril este era o destino fatal dos biscoitos de azeite. Homogeneizados, menos sápidos e menos duros. Ainda bem que os meus dentes já não são o que eram. Demasiados abris...
Passam duas raparigas sumariamente vestidas. Lembro-me do meu Pai, olho sempre atento, no barco que nos levava a Moçambique: Aquilo ia cheio de moçoilas em flor que ele chamava “as tenras”. Quarentão sedutor, desculpava-se, não fosse a minha Mãe enxofrar-se “A boi velho erva tenra!”
O mesmo dizia o Rui Feijó, que há quarenta exactos anos me acompanhou numa aventura abrilista e conspirativa que já por aqui contei. Durante todos os anos posteriores que viveu, telefonava-me comemorativo, evocando a nossa modestíssima colaboração revolucionária: “Ao fim e ao cabo, valeu a pena, não achas?” –“Claro que valeu, Rui, querido e desaparecido amigo, claro que valeu...” E valeram sobretudo aquelas dezenas de anos de amizade, discussão, de longa rememoração dos anos luminosos e difíceis do primeiro neo-realismo, do MUD, da longa resistência, da solidariedade e da generosidade com que acolhia fugidos na sua quinta da Senhora Aparecida, coisas que ele contava desenfadadamente, modestamente, como se o permanente risco que corria fosse de somenos. Agora já não telefona, mesmo que ao cair da tardinha, sem querer, sem me lembrar, eu espere a sua voz doce e cansada e a sua pergunta mais retórica que essencial, começo sempre de uma longa conversa que agora me faz tanta falta.
E é este o momento mais importante do dia 25 de Abril. A recordação do Rui, do Luís Albuquerque, do tio Marcos, do Joaquim Namorado, do Jorge Delgado e de tantos outros amigos mais velhos que me ensinaram quase tudo e a cuja memória tento ser fiel. De certo modo, pela sua encarniçada resistência, pela sua partilhada esperança, pelo seu sacrifício, pela dignidade com que viveram, pela generosidade com que me aturaram, são eles de facto, o verdadeiro espírito do 25 de Abril.
A noite chega, depois dela a madrugada e temos a certeza de que ninguém virá por nós, bater-nos à porta, à hora do leiteiro, para nos levar para parte incerta. E isso é também, e principalmente, o 25 de Abril.