Vicente!
mcr, 8 de Setembro de 2020
Ele era uma das caras possíveis, luminosas, apaixonadas, do Jornalismo. Era, digamo-lo sem receio, a honra do jornalismo português. Honra partilhada, evidentemente, basta recordar o Fernando Assis Pacheco, outro morto iluminado e iluminante, e muitos outros, não demasiados, convenhamos que isto é território de índios e cow-boys.
Conheci o Vicente, quando lá pelos inícios de setenta mandei uns textozinhos ao jornal cor de rosa que ele dirigia das lonjuras da Madeira. Eu, desde que “O Comércio do Funchal” começou a ser notado pela coragem, pela irreverência, pela alegria, tornei-me assinante e, não resisti a propor os meus fracos serviços. Tudo começou por um artiguinho sobre o facto de jogadores de futebol conseguirem dar-se bem mesmo sendo de clubes diferentes. Uns indignados resolveram criticar o facto. Queriam sangue e não jantaradas de amigos, uma vez acabado o jogo. Meti-me ao barulho, não resisto a causas perdidas, e lá verti algum sarcasmo e alguma paulada no lombo dos adeptos irascíveis. A coisa saiu e eu fiquei naturalmente contente. E reincidi, reincidi e reincidi. Entretanto a censura entrou em campo e recortava-me a prosa com violência. Da redacção vinha de quando em quando uma palavra amável, estilo “ainda não foi desta mas não desistas”. Claro que eu não desistia, era o que faltava.
Razões de vária ordem fazem com que pouco ou nada reste dessa minha colaboração. A censura e a minha pouca diligência, para não falar num malfadado incêndio onde perdi algumas pastas de prosa e, pior, várias gravuras e serigrafias, uma de Picasso incluída, deixam a posteridade desarmada quanto ao meu génio jornalístico. Paciência...
O 25 A veio, a vida mudou, o Comércio do Funchal também e lá nos perdemos de vista. Por pouco tempo, pois o Vicente, deixou a ilha e instalou-se em “cuba” (cfr o Alberto João Jardim da época, na altura transformado em ferrabrás insular). E começou a época do Expresso que, na altura ainda era recente mas já excelente. E melhorou com o Vicente (estão a topar a rima?)
E o Vicente lá estava, claro. A mesma escrita ágil, o mesmo raciocínio amplo, a mesma ou mais e melhor cultura ao serviço da causa da informação que continuava a ser um território de fronteira onde apareciam umas criaturas, ao serviço do “povo” (um povo inexistente e inventado mas útil para combater a “reacção” sempre multiforme e com mais cabeças do que a hidra) que tentavam acabar com qualquer jornal que não estivesse conforme à verdade a que alguns tinham direito.
Alguns anos depois, a aventura do “Público”, jornal que fiz meu desde o dia primeiro e inaugural. E o Vicente ao leme, com uma equipa de malta nova e entusiasta.
Entretanto, numas férias no Carvoeiro, voltei a encontra-lo graças ao José Luís Nunes que já por cá não anda (e que falta faz!!!) e ao Luís Matias, amigo certo de Lisboa e de Paris.
Foi uma festa.
Não sei se foi ele quem me indicou para cronista regular do Público, operação que se gorou devido a dificuldades financeiras do jornal. Digo isto porque o Vicente era uma das poucas pessoas que me conhecia a prosa desatada e que, melhor ainda, a apreciava. Se não foi peço desculpas a quem se lembrou de mim.
A vida dá voltas e voltinhas, o Vicente parecia um farol, aparecia e desaparecia mas ,como o farol, sempre a indicar a direcção certa, a rota cabal e aventureira. E a dizer as verdades incómodas que fizeram ranger os dentes a muitos políticos, mesmo os que lhe eram próximos.
Nos últimos tempos ia-o lendo no Público, nem sempre concordando mas seguro de uma coisa: o Vicente só escrevia o que acreditava e não fazia fretes.Por isso lia-o com gosto, com avidez e com, como dizê-lo agora?, com antecipadas saudades.
Agora, hoje, tropeçou na mesquinha. Ora porra!
Quando lá chegares dá um abraço ao Assis e a mais um par de amigos com que partilhei angustias, alegrias, esperanças e muito mais.
Os anos sessenta vão-se diluindo mansa mas inexoravelmente. É a lei da vida, melhor, da morte. Não há volta a dar-lhe.
Adeus, Vicente!